top of page

Consciência e Self


Quem está lendo essa frase? O que está interpretando e dando valor ao que está escrito? No momento em que abriu essa página e resolveu tentar entender essas palavras ao invés de prestar atenção no som ambiente ou em outros estímulos, quem focou essa atenção? Não há como desvincular perguntas sobre consciência como “Será que estou consciente neste momento?” sem haver o questionamento sobre self “Quem fez deste momento consciente?” “Quem é o agente que me permite estar a frente da consciência?”

O conceito de self está generalizado em nossa cultura e dia a dia, podemos observar a sua presença, por exemplo, na linguagem. O artigo “Eu” na língua portuguesa determina um sujeito, “Eu fiz isso”, “Eu quero”, “Eu vou”, “Eu sou”, e atribuímos a ideia de “eu”, de “ser”, a todo tipo de atividade, creditamos tudo aquilo que constitui a nossa própria imagem de ser, querer e até mesmo ações à noção de self, esse agente que se desdobra em nossas esperanças e medos, opiniões e pensamentos, essa barreira que separa o você do eu e mantém cada ser humano único.

A discussão sobre self não é exclusiva da ciência moderna, com o surgimento da psicologia e da neurociência. Assim como a cultura demonstra a impregnação dessa ideia, também há a discussão sobre o tempo desde registros primórdios; Platão que discutia sobre a separação do mundo das ideias e o mundo físico, assim como se a “essência de um ser é imortal”, até Nietzsche que ao proferir “Deus está morto e nós o matamos” declara que não há sentido em crenças e valores, mas somente no tratamento de si consigo mesmo e o reconhecimento da entidade “eu”, ou seja, a valorização do self em relação a coisas externas. Assim como ocorre a interpretação de self na religião, observamos no cristianismo católico que expõe a ideia de alma imortal, pensamentos e vontades como algo separado do corpo e que sobrevive após o seu falecimento. Na cultura oriental, especificamente budista, há uma diferenciação sobre self, não há uma alma indestrutível ou essência, mas sim uma não-self, que conta como essa noção de individualidade e agente é uma ilusão. O estudo sobre self é essencial para entendermos o que faz nós sermos o que somos, ou seja, é próprio estudo sobre todo o sentido de ser e viver. Monismo e Dualismo

O monismo e dualismo podem facilmente serem confundidos com ego e bundle, mas são conceitos diferentes que precisam ser explorados para uma melhor visão de self. A partir dessas definições o tema começa a entrelaçar-se mais com as ciências, há questionamentos que antes estavam apenas no campo das ideias, agora adentrando o empirismo.

No dia 13 de Setembro de 1848, um operário mecânico foi envolvido em uma explosão e teve o seu crânio perfurado por uma barra de ferro, ela adentrou a sua bochecha esquerda e saiu pelo topo do cabeça. Poderia ser apenas mais um acidente em uma época em que leis trabalhistas e segurança não eram tão importantes, mas um evento importante aconteceu, ele não morreu e parecia bem, até mesmo saiu andando logo após o acidente, encontrou alguém durante o percurso e foi levado para casa, e tudo isso consciente. O médico o encontrou e após ouvir o ocorrido ficou desacreditado da história, até que um pedaço de cérebro, descrito como “do tamanho de um xícara” caiu de sua cabeça. O nome desse funcionário é Phineas Gage e o seu caso é um importante marco para a história da ciência. Apesar de após alguns meses ele estar aparentemente bem, as pessoas começaram a comentar “Esse não é mais Gage”. Ele conseguia conversar, fazer atividades e estar consciente, mas suas ações e personalidade não batiam com a pessoa que era antes do acidente, ele era cavalheiro e gentil, agora era rude e desrespeitoso. Após alguns anos Phineas morreu depois de vários ataques epilépticos aos 36 anos de idade.

O caso de Phineas abriu precedente para a ligação entre self e mente. Se alguém perguntar hoje a você “Aonde está sua personalidade e pensamentos?” provavelmente irá responder “no cérebro”, ao invés de no coração como alguns cogitaram. E junto com o estudo da self e consciência ligada à mente veio a introdução dualista e monista, trazendo ramificações dessas ideias, para explicar o conceito de mente.

Monistas recorrem a uma explicação reducionista, tudo pode ser explicado em função dos nossos corpos e matéria, sendo assim, a nossa personalidade e pensamentos são apenas resultados de termos físicos e químicos; o fato de Phineas ter uma lesão em parte do seu cérebro e haver mudanças em sua personalidade ou pensamentos é uma conclusão esperada, assim como hormônios alterarem o humor de uma pessoa. Então, alguém pode mudar o estado da mente por meio de hábitos e alimentos, por exemplo, enquanto a mente pode modificar o corpo se alguma propriedade for alterada, pois os dois são matérias e uma só ligação.

Na visão dualista, mantêm-se a ideia de “Penso, logo existo”(Cogito, ergo sum) de Descartes(1596-1650), ele introduz aqui que o seu corpo pode ser posto em dúvida, mas não sua mente. Nessa linha, encontra-se a ideia que mente e corpo são aspectos separados. A visão dualista também sugere que há uma interação entre corpo e mente, o material interagindo com o mental, ou extra-físico. Não havendo dessa forma a possibilidade de haver essa interação explicada simplesmente em termos físicos ou químicos.

Imagine que você nunca viu cores, mas estudou a vida inteira sobre, estudou sobre neurotransmissores, o tipo de onda que cada cor transmite, etc. Você tornou-se um Neurocientista físico especializado em cores, no entanto, nunca presenciou a nenhuma cor de fato. Um dia, você acorda e consegue enxergar cores, ao ver essas cores, você aprendeu algo novo? O australiano Filósofo Frank Jackson desenvolveu esse exercício mental para questionar a teoria dualista, ele diz “A experiência qualitativa de ver uma cor, não é a mesma que saber fatos sobre a cor.” Sendo assim, se tudo pudesse ser explicado por meios físicos, você não aprenderia nada ao ver cores já sabendo tudo sobre elas. As críticas sobre esse exercício é que ele presume o resultado, caindo assim em uma falácia lógica, alguns monistas dizem que poderia acontecer da pessoa acabar realmente aprendendo nada. Múltiplas Selfs No cinema contemporâneo tornou-se comum a utilização de múltiplas selfs em enredos, tendo a sua maior popularidade estourada pelo clássico Clube da Luta, em que o personagem principal contém duas personalidade praticamente opostas, em que uma não tem ciência de que a outra divide o mesmo corpo até a grande reviravolta no fim do filme, surpreendendo o personagem e o espectador. Como a arte também imita a vida, houve casos tão interessantes sobre, apesar de não haver consenso da real existente da patologia, os diversos casos tornam o estudo sobre self mais instigante.

Um dos casos mais famosos, reportados pelo Dr Morton Prince (1854-1929) de Boston, em 1898 ele consultou Miss Christina Beauchamp que sofreu uma infância traumática e abusiva e reclamava de dores e cansaço. Ele a tratou com alguns tratamentos convencionais e hipnose. Ao sofrer hipnose uma segunda personalidade surgia, nomeada de BII, ela era mais passiva com relação a respostas, e não tinha conhecimento de Beauchamp, no entanto, um dia Beauchamp começou a referir-se a si mesma como “Ela”. Uma terceira personalidade havia surgido, nomeada agora de BIII e posteriormente ganhou o nome de Sally, essa era imatura, egoísta e devassa, ao contrário de Beaucamp que era religiosa e generosa. Durante vários anos várias personalidades surgiram, com diferentes preferências, habilidades e personalidades.

Uma das maiores curiosidades, Sally gostava de enganar Beauchamp ao caminhar de madrugada e deixá-la reaver o controle do corpo, apenas para Beauchamp encontrar-se sozinha e perdida para voltar para casa ou fumar cigarros, ato que Miss Christina Beauchamp condenava ativamente.

O principal padrão que ocorria é que as personalidades geralmente não tem conhecimento das existências das outras, no caso de Beauchamp apenas Sally tinha, enquanto as outras duas não, além de haver lapsos de memórias, as personalidades tinham um completo esquecimento do tempo acordado de outras.

As diferenças entre Bundle e Ego podem ajudar a entender interpretações sobre os casos de múltiplas personalidades. Prince continha uma visão de Ego, em que acreditava não na existência de uma verdadeira Beauchamp, mas sim na existências de várias selfs com separadas vontades que poderiam convergir para uma self primária. O filósofo e psicólogo Rom Harré e o Neurocirurgião Gran Gillet utilizaram o caso de Miss Beauchamp para postular uma ideia bundle “A diferença entre a velha ideia de self como algo único e produzido dentro de nós, para a nova ideia de self como algo de contínua produção e mudança.”

Cérebros divididos e O Interpretador

Em paralelo com os casos de múltipla personalidade, há os raros casos de cérebros divididos. Em que há uma literal divisão dos hemisférios direito e esquerdo, havendo uma diferença na forma de reagir a imagens e palavras de cada região.

Em situações de epilepsia grave, pode ocorrer de não só a vida do paciente tornar-se extremamente difícil pelas constantes convulsões, como também a vida do paciente corre perigo a cada vez que acontece um ataque. Em situações tão graves há então uma cirurgia para diminuir a frequência e impedir que haja danos generalizado no encéfalo, essa cirurgia ocorre de forma que corta-se o corpo caloso ou parte do mesmo, interrompendo ou diminuindo a conexão entre os dois hemisférios. Mesmo que extremamente invasivo e de fato ocorra um dano considerável, os pacientes recuperam-se bem e conseguem viver uma vida de boa qualidade após a cirurgia, testes de QI, fala e motor mostram pouca diferença entre o “antes” e “depois”. Em 1961, o neurocientista Michael Gazzaniga testou um paciente que tinha o cérebro dividido, paciente este chamado de W.J. Ele o testou de forma que cada hemisfério fosse testado separadamente. Sabendo que as informações visuais cruzam-se por meio do quiasma óptica, o lado direito recebe informações do olho esquerdo e vice-versa. Esse evento ocorre nas mais diversas partes do corpo, como a parte direita motora do corpo é controlado pelo hemisfério esquerdo e a esquerda pelo direito, essas informações no entanto não são tão localizacionistas, ocorrem trocas de informação por meio do corpo caloso, de forma que diversas áreas de ambos os hemisférios são ativadas em menor ou maior intensidade ao interpretar um objeto, ou realizar uma ação. Gazzaniga, realizou o famoso experimento em que deixava o voluntário em frente a uma tela dividida em duas com um ponto central. Imagens e palavras apareciam nas duas partes da tela, o voluntário respondia verbalmente, desenhava ou escrevia o que aparecia nas telas. Se uma imagem aparecia, digamos, no lado direito do campo visual, ele conseguia falar o que havia aparecido, porém se aparecesse no esquerdo, não tinha conhecimento da imagem. Isso ocorre porque o hemisfério esquerdo é o responsável majoritário pela capacidade verbal, contendo as áreas de Broca e Wernicke por exemplo. Porém, a parte mais interessante é que o paciente conseguia desenhar o que havia aparecido com a mão esquerda, mesmo que afirmar-se não ter visto nada. A tarefa teve as mais variadas variações, como por exemplo ocorrendo simultaneamente imagens de ambos os lados, enquanto o voluntário respondia estar vendo uma garrafa a mão desenhava um martelo.Sperry, um neurobiologista e fisiologista(1968) afirmou, “Um hemisfério não sabe o que o outro andou fazendo”. Ainda mais impressionante, os hemisférios resguardavam memórias das tarefas, ou seja, a mão esquerda conseguiria desenhar o objeto visto uma hora após o experimento, mas o paciente negaria ter o visto. Sperry discorreu que estava ocorrendo uma dupla consciência ou “dois sistemas de consciência”. Em suas palavras “Cada hemisfério tem suas próprias e privadas experiências”. De início, Gazzaniga também acreditava em uma consciência dupla, porém após formar a sua teoria de “interpretador”, que seria localizado no hemisfério esquerdo, ele descartou a ideia de dupla consciência. Ele postulou a ideia após mostrar a um paciente a imagem de uma pata de galinha ao hemisfério esquerdo, enquanto ao direito um dia de neve, logo após foi colocada uma gama de imagens para ele escolher, então escolheu uma pá com a mão esquerda e uma galinha com a direita. Quando questionado sobre a escolha, ele respondeu “Ah, fácil. A garra da galinha é da galinha, e você precisa de uma pá para limpar a sujeira da galinha. Inventar histórias ocorria de forma recorrente.Quando era demonstrado alguma imagem ao hemisfério direito que despertava emoções o corpo inteiro reagia, com sinais de medo, risada ou vergonha, e quando perguntado o porque, o paciente inventava histórias. Também ocorria de que caso aparecesse algum comando ao hemisfério direito, como rir ou andar, o voluntário obedecia e ao ser questionado respondia algo como “o experimento foi engraçado”, “precisava esticar as pernas”. Gazzaniga então postulou que por o hemisfério esquerdo ser o responsável pelo uso de linguagem e de organização da interpretação de eventos, como por exemplo sentir medo ao ver uma cobra, então era a chamada “consciência de alto nível”.

Referências:

Livro Consciouness, por Susan Blackmore

Livro E O Cérebro Criou o Homem, por António R. Damásio

Who's in Charge?, por Michael Gazzaniga Libet, Benjamin, Curtis A. Gleason, Elwood W. Wright, and Dennis K. Pearl. "Time of conscious intention to act in relation to onset of cerebral activity (readiness-potential)." Brain 106, no. 3 (1983): 623-642.

Acessar artigo : https://academic.oup.com/brain/article-abstract/106/3/623/271932?redirectedFrom=fulltext

482 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page